ISTO É FELICIDADE
Soluço preso na garganta e a fome subornada pelos cafés com
farinha Felicidade costurava a vida.
Vovó era assim: uma bordadeira de mão cheia (como ela dizia).
Fazia crivos e bainhas abertas nos lençóis e toalhas sob encomenda que recebia
lá da “cidade”.
Eu era
apenas uma criança que feito anjo adorava voar ao redor de sua aura.
Naquela
época havia encanto na pobreza e não era grande demérito ser pobre. Eu não
conhecia milionários. E haviam os remediados (hoje é esta a minha opinião) e os
pobres. Remediados eram os que tinham alguma propriedade e os pobres os que
moravam de aluguel e lutavam para viver e sobreviver.
Pobre
brincava de pés descalços, entrava em qualquer córrego para pegar piavinhas
(nada era poluído), comia fruta do quintal, colhia ovos do galinheiro, sim,
porque todos tinham alguma coisa plantada no quintal e criavam aves domésticas:
galinhas, patos, marrecos e perus. E alguns criavam até porcos ou cabras.
Naquele
tempo não havia televisão oi internet. Sucos eram das frutas colhidas do
quintal e raramente se tomava CRUSH ou GRAPETTE. O café era do nosso quintal
porque vovó Felicidade plantava.
Vovó também
era conhecida como D. Felícia e só foi registrada como Felicidade aos setenta e
sete anos quando as filhas, pela idade que ela dizia os filhos mais velhos
nasceram e foram registrados.
Eu adorava
voar em torno dela e penso que éramos almas complementares. Nós nos entendíamos
com o olhar e eu sempre a vi como uma alma menina, mesmo quando mudou de
planeta aos noventa e sete anos. Ela levou consigo a minha felicidade naquele
dia.
Felicidade
ou vó Felícia era completamente analfabeta mas trazia consigo uma compreensão
psicológica e filosófica da vida que só agora, depois de muito estudo eu
compreendo. O marido dela (meu avô materno) chamava-se Cândido e tinha por mim
uma idolatria que mesmo menino eu não entendia, mas adorava ser paparicado, por
ele e por meus tios. Com meu avô eu pouco convivi, pois ele faleceu eu tinha
apenas onze anos. Só que ele não tinha esta compreensão, nem da vida, nem de
Felicidade. Ele era o típico “macho das antigas”. Olhos azuis, terno branco,
chapéu cinza – esta é a imagem que eu gravei e retive na memória do homem que
abraçava Felicidade na alcova e com ela teve sete filhos.
Eu não
posso dizer que interagi com meu avô. Mas com minha avó eu compartilhei desde a
água que ela colocava na bilha para refrescar, até o calor do seu carinho que
não precisava nem de abraços. Eles sobreviviam em seus olhos verdes que me
projetaram esperança para toda a vida.
Mário Feijó
(20.06.12)
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