BRUMAS DO INVERNO
Estávamos no mês de junho quando o
inverno (aqui no hemisfério sul) solta suas brumas através de um vento gelado. Nas
ruas as pessoas andavam encolhidas, úmidas e apressadas.
Joana era apenas uma menina, com
seus sete anos. Fugira de casa, pois o pai, bêbado, batia-lhe todos os dias e a
mãe submissa não intercedia. Algumas vezes até tentara lhe molestar. Era melhor
viver nas ruas do que ter uma vida daquelas...
14.07.16
Joana dormia agora nas ruas da
cidade. Brincava com pombos na praça. Tinha liberdade, não tinha mais amor. Aliás,
amor era a única coisa que Joana jamais conhecera.
Volta e meia ganhava uma moeda. Já
conhecia todos os recantos da cidade. Não tinha luxos. Comia tudo que achava
nos lixos da cidade. Afinal de contas, os ratos não sobreviviam? Mas Joana não
tinha capacidade nem para raciocinar sobre isto. No entanto no mundo dos bichos
ela era apenas mais um deles.
Enquanto tinha inocência, Joana
era inocente, mas a vida mostrava a Joana que a inocência é um elemento que tem
que ser superado quando pensamos em sobrevivência. E Joana começara a ser
esperta, feito um rato que foge do gato que quer lhe abocanhar ...
16.07.16
Dormia onde conseguia se esconder,
entre construções ou em locais abandonados. Quando era verão isto não era
problema, mas quando o inverno chegava era mais duro achar um abrigo. Começou a
se misturar com mendigos de rua. No início a maioria lhe protegia e dava
guarida. Pegou sarna dos cachorros e piolho das pessoas.
Um dia uma senhora da cidade
ofereceu-se para ajudá-la. Chamou-a para morar em sua casa como se fora sua
filha. Parecia uma boa oportunidade, foi. No entanto a “mãe” passou a aproveitá-la
nos serviços domésticos e com o passar do tempo ela virou empregada da casa,
sem amor e sem salário, mas não queria voltar para as ruas então se sujeitou à “escravidão”.
Com o passar dos anos não havia mais amor entre elas e a “mãe” mostrou-se quase
cruel.
Sem estudar e com dificuldades em
se relacionar com as pessoas, um dia ela resolvera fugir novamente. Estava agora
com 15 anos. Foi para a cidade grande. Agora estava na capital. Procurou emprego
e achou um de doméstica para dormir no emprego. Tentou várias vezes voltar a
estudar. Ia um a dois meses e não conseguia acompanhar, além do que sentia
vergonha por estar aprendendo a escrever somente com 15 anos. Na escola noturna
arrumou um namorado e por carência de amor entregou-se a ele na primeira
oportunidade. Engravidou. Ele não sumira, ficara por perto e quando chegou a
hora do bebê nascer foi para a casa da “mãe” que um mês depois a mandou voltar
ao trabalho.
- O bebê fica aqui. E o namorado
também ficou. Apaixonou-se pela “mãe” e um ano depois nascia mais um bebê. O seu
antigo namorado torna-se seu “padrastro”.
Joana continuava trabalhando na casa
onde antes trabalhava.
Passaram-se mais alguns anos e Joana
arrumara outro namorado. Engravidara novamente. Quando chegou a hora do bebê
nascer voltou “contrafeita” à casa da “mãe” que um mês depois a mandara voltar
ao trabalho...
- O bebê fica! Era uma menina
agora.
Seu primeiro filho aprendera a lhe
chamar de “tia” e só depois de adulto descobrira que a “tia” na realidade era
sua mãe verdadeira. A irmã também aprendera a chamar a mãe de “tia” e nunca a
aceitou como mãe. Não compreendia aquele abandono. E realmente, tudo era muito
mal explicado. A ignorância e a submissão nunca deixaram aquela mãe lutar por
seus filhos.
Pensava ela, “de que adianta eu
lutar por meus filhos, se não tenho onde, nem como criá-los”.
O tempo passou e Joana nunca
conseguiu o amor de seus filhos. Eles não lhe perdoam. Ela sofre... a “mãe”
agora já morreu, mas nunca foi uma mãe para seus filhos. Criou-os como se
fossem serviçais. E nunca lhes deu amor. Acabara sozinha com uma doença
terminal que pouco a pouco lhe destruiu o corpo. A alma não se sabe se foi redimida
ou se pena nos umbrais do inferno.
Joana foi envelhecendo. O coração
partido sofria sem o amor dos filhos. Tinha consciência de que não deu amor,
porque nunca aprendera a amar.
Com quase trinta anos arrumara um
namorado que lhe oferecera uma pequena morada, numa vila distante. Fora morar
com ele, mas continuava doméstica no emprego de quinze anos.
Um ano depois...
18.07.16
O DESTINO DOS FILHOS
Bem, um ano depois Joana já estava
envolvida em outras tramas. Sua vida era uma continua tentativa de acertos. Por
não ser muito inteligente ela não pensava nas dores que poderia estar causando
a seus filhos com a sua acomodação em deixá-los com a “mãe”. Acreditava que lá
eles tinham um lar e amor.
Sentia-se feliz com João. Com ele
agora tinha um filho e uma casinha simples, numa vila distante da grande
cidade. Tentara trazer os outros filhos para junto de si, mas a “mãe” não
deixara. Ela não era forte o bastante para brigar. Continuou “tia” dos próprios
filhos. Não dormia mais no emprego, nem tentara mais voltar a estudar.
Durante o dia deixava o filho que
tivera com João com uma vizinha, a quem ajudava. Não pagava porque já ganhava
pouco também.
O tempo passava célere e a vida de
Joana ficou menos corrida. Seu marido trabalhava como zelador em um prédio, num
bairro da periferia daquela grande cidade. Dormia em casa todos os dias, e, se
não fosse pelos filhos que deixara com a “mãe” ela podia dizer que era feliz.
Um dia bateram em sua porta seus
filhos mais velhos. O menino tinha 17 anos, a menina 15. Queriam morar com ela,
pois era a única parente mais próxima, a “tia”. Joana resolvera contar-lhes a
verdade. Pessoa simples, não sabe contar histórias, não soube explicar seus
sentimentos, nem seu abandono, nem o abandono que causara. Os adolescentes
revoltados fugiram de sua casa, antes mesmo que ela argumentasse melhor. Não queriam
mais saber dela. Saíram dali dizendo que a odiavam.
Joaquim vivera nas ruas por alguns
meses até que um antigo colega de escola, cabeleireiro agora lhe convidara para
morar juntos. Aceitou e passou a trabalhar num posto de gasolina. A menina,
Marina, tornara-se prostituta e vivia bêbada e drogada. Joana sofria com
aquilo, porém nada fazia. Nada sabia fazer para solucionar o problema. Começara
a adoecer e antes mesmo que tudo aquilo terminasse suas entranhas começaram a
ser devoradas por um câncer que a matou em pouco tempo.
O filho mais velho agora estuda. Está
com 30 anos. Quer ser advogado. Marina fugiu com um cafetão e ninguém mais
soube sobre ela. O terceiro filho tem 13 anos e mora com o pai e uma nova
mulher que este arrumou.
A vida algumas vezes faz com que
pensemos que somos os únicos quem sofre. Mas tudo o que fazemos tem consequências
sérias para nós ou para os outros.
Joana nunca teve sabedoria para
compreender seu sofrimento e crescer com ele. A sua submissão criou outros dramas,
mesmo quando ela não queria prejudicar ninguém. Sua busca era uma busca de
amor, por amor, com amor que não aprendeu a dar, nem mesmo quando se casou, tampouco
quando se tornou mulher.
20.07.16
Mário Feijó