quarta-feira, 8 de abril de 2015

A LUA E O RIO

“MOON RIVER”

Era madrugada. Todos dormiam, menos Peter que saia da lanchonete, onde trabalhava para sustentar a família. Ele morava num subúrbio distante de Nova Yorque. Nascera lá, mas tinha também cidadania brasileira porque os pais haviam ido pra lá tentar a vida.
Ele tinha apenas 14 anos quando os pais morreram no terror do Wolrd Trade Center, em 11.09.2001. Fora morar com uma tia. Passou-se muito tempo até que ele superasse o susto e o medo. Sua tia tinha adoração por Audrey Hepburn e por Bonequinha de Luxo e, sempre que podia ouvia e cantava Moon River. Agora a música não lhe saia da cabeça enquanto caminhava, neste inicio de primavera, no hemisfério norte, caminhando em direção ao lar, onde a esposa Karen lhe esperava, corpo quente e uma térmica com café novinho, para lhe agradecer o amor que lhe dava, agora que se preparavam para receber os gêmeos que chegariam no verão.
Era paz em seu coração. Finalmente tinha paz e esperança e queria que o mundo fosse tão belo quanto fora Audrey ou tão encantador quanto fora o filme Bonequinha de Luxo.

Mário Feijó
08.04.15


Texto inspirado na coluna de David Coimbra, publicado no dia 07.04.15, no Jornal Zero Hora, Rio Grande do Sul.

O rio - 07 de abril de 2015 (David Coimbra)

Quando fecho os olhos, pouco antes de dormir, às vezes penso que o mundo inteiro está dormindo naquele momento… há algo de importante nisso. Por mundo inteiro refiro-me ao meu mundo, claro. Ao mundo que me interessa, são as pessoas que eu conheço.
Imaginar que todas as pessoas estão dormindo é reconfortante. O sono é algo que nos iguala em nossa condição básica, que é a condição animal. Durante essas horas, não existem poderosos nem oprimidos, não existem ideologias, dogmas, crenças ou moral. Ninguém pode fazer mal a ninguém, ninguém faz um comentário ácido na internet, ninguém tenta convencer ninguém de que algo está errado, até porque erros não são cometidos durante o sono. Durante o sono, dorme-se, tão somente.
Hitler, se vivo estivesse, estaria dormindo também, e seu sono seria tão inocente quanto o de um nenê que nasceu ontem.
É tão bom pensar isso. Pensar que o mundo está em repouso.
Noite dessas, alta madrugada, acordei. Continuei deitado na cama, imóvel sob as cobertas, ouvindo o murmurar do silêncio. Nenhum cachorro latia, nenhum carro passava ao longe, eu mal ouvia o ressonar da minha companheira, ao meu lado. Então, baixinho, porém nítido, assomou um assobio. Era um assobio masculino, tenho certeza, e ele vinha à distância, talvez lá da outra ponta da quadra, além da esquina.
O que aquele homem fazia na rua àquela hora? Devia caminhar sozinho e sem pressa. Ninguém assobia de madrugada, se está acompanhado ou apressado. Imaginei que caminhasse de mão no bolso, olhando para o céu azul-escuro, admirando alguma estrela mais vaidosa.
Prestei atenção para identificar a melodia. Era Moon River, que a gloriosa Audrey Hepburn cantou sentada à janela do seu apartamento em Bonequinha de Luxo. É uma música linda e nostálgica. Uma música triste.
Fiquei ouvindo. Ele assobiava bem. O som veio crescendo à medida que se aproximava. Moon River. Ele assobiava para si mesmo, nem desconfiava que havia alguém acordado, deitado, ouvindo. A melodia preencheu o quarto e o meu coração. Era como o rio da música, lento e eterno, sempre o mesmo e mudando sempre.
Ele continuou assobiando enquanto se afastava, e a melodia foi se esvanecendo aos poucos e, naquele instante, por algum motivo, pensei em todas as pessoas que amo, que estavam quietas no escuro de seus quartos, dormindo, sem saber que, em certa parte do mundo, alguém assobiava de madrugada e que outro alguém ouvia em segredo. E, então, senti a emoção aquecer-me o peito, e fiz uma pequena oração para que, quando a luz retornasse e o rio dos dias voltasse a correr, tudo ficasse igual como nas horas de sono. Tudo ficasse em paz.

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