“MOON RIVER”
Era madrugada. Todos dormiam,
menos Peter que saia da lanchonete, onde trabalhava para sustentar a família. Ele
morava num subúrbio distante de Nova Yorque. Nascera lá, mas tinha também
cidadania brasileira porque os pais haviam ido pra lá tentar a vida.
Ele tinha apenas 14 anos quando os
pais morreram no terror do Wolrd Trade Center, em 11.09.2001. Fora morar com
uma tia. Passou-se muito tempo até que ele superasse o susto e o medo. Sua tia
tinha adoração por Audrey Hepburn e por Bonequinha de Luxo e, sempre que podia
ouvia e cantava Moon River. Agora a
música não lhe saia da cabeça enquanto caminhava, neste inicio de primavera, no
hemisfério norte, caminhando em direção ao lar, onde a esposa Karen lhe
esperava, corpo quente e uma térmica com café novinho, para lhe agradecer o
amor que lhe dava, agora que se preparavam para receber os gêmeos que chegariam
no verão.
Era paz em seu coração. Finalmente
tinha paz e esperança e queria que o mundo fosse tão belo quanto fora Audrey ou
tão encantador quanto fora o filme Bonequinha de Luxo.
Mário Feijó
08.04.15
Texto inspirado na coluna de David
Coimbra, publicado no dia 07.04.15, no Jornal Zero Hora, Rio Grande do Sul.
O rio - 07 de abril de 2015 (David Coimbra)
Quando fecho os olhos, pouco antes de dormir, às
vezes penso que o mundo inteiro está dormindo naquele momento… há algo de
importante nisso. Por mundo inteiro refiro-me ao meu mundo, claro. Ao mundo que
me interessa, são as pessoas que eu conheço.
Imaginar que todas as pessoas estão dormindo é
reconfortante. O sono é algo que nos iguala em nossa condição básica, que é a
condição animal. Durante essas horas, não existem poderosos nem oprimidos, não
existem ideologias, dogmas, crenças ou moral. Ninguém pode fazer mal a ninguém,
ninguém faz um comentário ácido na internet, ninguém tenta convencer ninguém de
que algo está errado, até porque erros não são cometidos durante o sono.
Durante o sono, dorme-se, tão somente.
Hitler, se vivo estivesse, estaria dormindo também,
e seu sono seria tão inocente quanto o de um nenê que nasceu ontem.
É tão bom pensar isso. Pensar que o mundo está em
repouso.
Noite dessas, alta madrugada, acordei. Continuei
deitado na cama, imóvel sob as cobertas, ouvindo o murmurar do silêncio. Nenhum
cachorro latia, nenhum carro passava ao longe, eu mal ouvia o ressonar da minha
companheira, ao meu lado. Então, baixinho, porém nítido, assomou um assobio.
Era um assobio masculino, tenho certeza, e ele vinha à distância, talvez lá da
outra ponta da quadra, além da esquina.
O que aquele homem fazia na rua àquela hora? Devia
caminhar sozinho e sem pressa. Ninguém assobia de madrugada, se está
acompanhado ou apressado. Imaginei que caminhasse de mão no bolso, olhando para
o céu azul-escuro, admirando alguma estrela mais vaidosa.
Prestei atenção para identificar a melodia.
Era Moon River, que a gloriosa Audrey Hepburn cantou sentada à
janela do seu apartamento em Bonequinha de Luxo. É uma música linda
e nostálgica. Uma música triste.
Fiquei ouvindo. Ele assobiava bem. O som veio
crescendo à medida que se aproximava. Moon River. Ele assobiava
para si mesmo, nem desconfiava que havia alguém acordado, deitado, ouvindo. A
melodia preencheu o quarto e o meu coração. Era como o rio da música, lento e
eterno, sempre o mesmo e mudando sempre.
Ele continuou assobiando enquanto se afastava, e a
melodia foi se esvanecendo aos poucos e, naquele instante, por algum motivo,
pensei em todas as pessoas que amo, que estavam quietas no escuro de seus
quartos, dormindo, sem saber que, em certa parte do mundo, alguém assobiava de
madrugada e que outro alguém ouvia em segredo. E, então, senti a emoção
aquecer-me o peito, e fiz uma pequena oração para que, quando a luz retornasse
e o rio dos dias voltasse a correr, tudo ficasse igual como nas horas de sono.
Tudo ficasse em paz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário