CAMELINHO
Nascido em Lagarto, cidadezinha do interior de Sergipe,
filho de pequeno agricultor, ele tinha mais que dez irmãos, não lembrava mais
ao certo quantos eram, tinha a mente enevoada pelas doses de “branquinha”, que
ao seu ver “não faziam mal a ninguém”.
Pessoas que
se envolvem com o álcool e outras drogas, geralmente não têm consciência de que
são doentes. Com eles, algumas vezes, adoece junto toda a família.
No entanto,
nosso personagem real, quando me conheceu logo pediu que eu escrevesse sua
história. Pouco me contou. Nomes e datas, naquele momento eram inexatos, mas para
que o personagem não perdesse a aura de personagem, misturado a um toque de
realidade eu preferi não me aprofundar nas suas angústias de ser humano.
Disse-me
ele que com quatorze anos saiu de casa, indo embora de Sergipe para São Paulo. Foi
fazer a vida e veio para o sul (São Paulo fazia parte do sul, na época). Deixou gente
chorando por ele. Seis anos depois seu pai apareceu para buscá-lo. Ele disse
que voltaria, mas nunca mais voltou.
- Vá meu
pai, eu estou terminando um serviço aqui e quando estiver pronto volto.
Ao certo
naquele momento não disse se tinha voltado. Depois descobri que nunca mais
voltou.
Logo novo
começou a namorar uma linda jovem. Não deu certo com ela, mas foi se envolvendo
com sua irmã e acabaram casando algum tempo depois. Esta era muito brava, mas
ele disse que tinha paciência e que já ia fazer 50 anos que estavam casados. Eles
têm muitos filhos e netos e os problemas são muitos, “mas quem não os tem”?
disse-me ele, numa lucidez ingênua.
São personagens
assim “doloridos” que nos inspiram a escrever outros na ficção. No entanto,
mesmo os mais lúcidos dos humanos, nunca sabem quando vivem uma fantasia ou uma
realidade efêmera. Há várias formas de se fugir da realidade. Há muitos subterfúgios
para que se possa viver uma fantasia. Há gente que se viciam em comida, em sexo,
em dinheiro, na mentira ou até mesmo nas drogas e se fingem felizes.
Ser real
algumas vezes é dolorido demais e penso que “aquele senhor” tem muitas dores
armazenadas em seu peito e sem saber resolvê-las esconde-se na bebida e passa
os dias anestesiado por ela. Fica mais fácil viver no limiar do real e da
fantasia, desta forma ganha asas, e viver fica muito mais difícil.
Ele ainda
sonha em viajar de volta para Sergipe com a esposa e pensa em conhecer o sul.
E lá no
interior de São Paulo ouço seus netos dizendo “eu nunca vi o mar”, com olhos de
sonhadores.
Ah!
Camelinho é o nome da cachaça que ele traz escondido embaixo do braço, para
ninguém ver, escondendo no meio do mato onde de vez em quando vai soltar o gado
que está preso.
Mário
Feijó
08.10.15