CHINELOS TROCADOS
Todos os dias ao sair da cama
ela colocava seus pés alvíssimos no piso gelado da casa. Para que não apanhasse
“friagem” nos pés, como diziam os antigos, deixávamos ao seu alcance uma
sandália de borracha para que calçasse.
Cabelos desgrenhados, parecendo
fios de lã que haviam sido desenrolados por um gato, ela não se preocupava em
arrumá-los, vez ou outra, mal os tirava da frente dos olhos. Não dava para
achar o fio da meada, caso alguém resolvesse procura-lo.
Os olhos dela eram de um azul
celestial, beirando a transparência. Se um dia teve dentes, não havia mais sinal
deles em sua boca.
Na cozinha todas as seis
crianças se sentaram ao redor da mesa. O cheiro de café tomara conta daquela
pequena mesa de café.
De repente, aparece na cozinha,
ninguém menos que ela – vó Angelina – atônita! Talvez tenha acordado com a
algazarra de todas aquelas crianças famintas que se preparavam para ir à
escola.
Fez-se silêncio!
Todos tinham medo dela. Não que
fizesse mal a qualquer um, mas era sabido que a avó paterna, em seus setenta e
sete anos, estava senil. Mesmo que não contassem bastava olhar para aquele
vestido azul clarinho com flores também azuis, de um fino tecido de algodão. Por
cima, ela sempre usava um cardigã cinza de lã, podia ser verão ou inverno. Nos pés
ela trazia as tais sandálias, sempre com os pés trocados.
O pai das crianças fazia um
café que, geralmente, era servido com leite fresco, colhido por um dos filhos
na frente do portão, que o leiteiro lá deixara. Os pães também eram torradinhos
e frescos que o pai comprara antes de acordar as crianças, na padaria do Sr.
Marcelino.
O filho mais velho ajudava a arrumar
os menores e depois tinha que entrar no quarto dos pais (a mãe ainda dormia)
para pegar um penico cheio de urina e merda para despejar na “patente” que
ficava no fundo do quintal. Algumas vezes o penico transbordava em suas mãos
parte dos detritos fedorentos. Era uma rotina tão marcante que o menino mesmo
quando já tinha quase setenta anos, lembrava daquele cheiro fétido e
desagradável.
Tudo retornava à sua mente
quando o dia amanhecia e sem perceber, ao se levantar, ele calçava as sandálias
que estavam ao lado da cama e sentia algo diferente: os chinelos estavam
trocados sob seus pés...
Mário Feijó
22.10.20
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